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Imunidade tributária sob pressão: os efeitos da LC 214/2025 no terceiro setor

As entidades sem fins lucrativos desempenham um papel fundamental na promoção de causas sociais, saúde, educação, cultura e filantropia. No Brasil, essas instituições estão inseridas em um complexo arcabouço legal que as distingue em duas categorias principais: isentas ou imunes.

A imunidade é um direito constitucional que impede a tributação em determinadas situações, enquanto a isenção é um benefício legal que pode ser concedido ou revogado por meio de legislação ordinária.

Dentro desse universo, por exemplo, algumas entidades imunes podem ser reconhecidas como Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS), um título concedido pela Receita Federal após um processo rigoroso de certificação, conforme os requisitos estabelecidos pela Lei Complementar nº 187 de 2021.

 

O Contexto das Entidades Imunes

A obtenção da Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) é importante para que instituições possam usufruir da imunidade tributária sobre contribuições sociais e assistenciais. De acordo com a Lei Complementar nº 187/2021, é imprescindível que a entidade seja uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, operante há pelo menos 12 meses.

A certificação CEBAS, além de ser um pré-requisito para a imunidade, também permite a isenção da Contribuição Patronal Previdenciária sobre a Folha de Pagamento (FOPAG) e a imunidade da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), entre outros tributos. Assim, para essas organizações, o CEBAS representa não apenas um reconhecimento de sua relevância social, mas também uma ferramenta vital para garantir a sustentabilidade financeira de suas operações.

Benefícios Tributários das Entidades Certificadas

A Constituição Federal e a legislação tributária brasileira asseguram uma série de vantagens para as entidades certificadas com o CEBAS. A imunidade tributária, conforme estabelecido no art. 150, VI, c, da Constituição, abrange o patrimônio, a renda e o consumo das entidades que atendem aos requisitos legais. Isso inclui a isenção de impostos como IPTU, IPVA, IRPJ, ISS, ICMS e IPI, desde que esses tributos incidam sobre atividades essenciais à entidade.

No entanto, a imunidade é restrita às operações diretamente ligadas às finalidades sociais das entidades. Isso significa que as instituições devem garantir que as isenções sejam aplicadas estritamente em suas atividades essenciais, como serviços de saúde e assistência social.

Nesta linha, a Lei Complementar nº 187/2021 estabelece os critérios que as entidades beneficentes de assistência social devem cumprir para usufruir da imunidade tributária. Entre os requisitos, destacam-se a proibição de remunerar dirigentes e conselheiros com recursos da instituição, a aplicação integral dos recursos na manutenção dos objetivos institucionais e a manutenção de uma escrituração contábil regular.

Esses requisitos, além de serem reforçados pelo Código Tributário Nacional (CTN), são fundamentais para que as entidades possam se beneficiar da imunidade não apenas sobre contribuições sociais, mas também sobre impostos como o IPTU, IPVA, IRPJ, ISS, ICMS, IPI, PIS e COFINS. Assim, o cumprimento rigoroso dessas obrigações é essencial para a manutenção da imunidade tributária.

Para análise detalhada, confira: Como a jurisprudência impacta o terceiro setor.

Contribuinte de Fato e de Direito: Impacto na Imunidade

A distinção entre contribuinte de fato e contribuinte de direito é crucial para compreender os impactos da tributação sobre as entidades imunes. O contribuinte de direito é o responsável legal pelo pagamento do tributo, enquanto o contribuinte de fato é aquele que arca com o ônus econômico do tributo, repassado geralmente no preço final de bens e serviços.

Em tributos indiretos, como o ICMS e o IPI, essa distinção é evidente, pois o consumidor final, mesmo que imune, acaba suportando o custo do tributo embutido no preço dos produtos. Assim, embora as entidades imunes não sejam contribuintes de direito, os tributos indiretos impactam sua capacidade financeira e, por conseguinte, sua atuação em suas finalidades sociais.

O Debate Jurídico Sobre o IPI nas Aquisições por Entidades Imunes

O cerne da questão deste artigo reside no debate sobre a imunidade ao IPI nas aquisições de insumos, medicamentos e equipamentos por entidades de saúde imunes. A título de exemplo, em 2016, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao julgar o recurso da União, manteve a decisão favorável a entidade beneficente. Sob a relatoria da Desembargadora Ângela Maria Catão, a 7ª Turma determinou:

“Comprovado o caráter filantrópico da entidade e o uso do bem na prestação de seus serviços específicos, indevida é a exigência do pagamento do IPI.”

A União recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em 2021, decidiu:

“O caso não é de competência desta Corte Superior – STJ. (…) Ante o exposto, conheço do agravo para conhecer em parte do recurso especial e negar-lhe provimento.”

Essa decisão final favorável a entidade e encerrou o debate, consolidando o entendimento de que a imunidade tributária ao IPI também se aplica às aquisições de insumos por entidades beneficentes, desde que utilizadas em suas atividades essenciais.

O Outro Lado da Moeda

Em paralelo, em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Tema 342, que tratava do ICMS suportado por entidade beneficente na condição de contribuinte de fato, semelhante ao caso relacionado ao IPI. O STF decidiu que:

“A imunidade tributária subjetiva aplica-se aos seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante para a verificação da existência do benefício constitucional a repercussão econômica do tributo envolvido.”

Essa decisão destaca a importância da relação jurídica entre o fisco e o contribuinte de direito, sem considerar os efeitos econômicos indiretos do tributo sobre terceiros.

Apesar do entendimento do STF no Tema 342, outras decisões judiciais seguiram um caminho diferente. Por exemplo, em 2018, novamente sob a relatoria da Desembargadora Ângela Maria Catão, o TRF da 1ª Região reafirmou:

“A imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição Federal, em favor das instituições de assistência social, abrange o Imposto de Importação e o Imposto sobre Produtos Industrializados, que incidem sobre bens a serem utilizados na prestação de seus serviços específicos.”

Já em 2022, a Desembargadora Rosimayre Gonçalves, também do TRF da 1ª Região, decidiu que, em caso de importação de mercadorias:

“A entidade beneficente de assistência social tem direito à imunidade do Imposto de Importação, IPI, PIS/Cofins-importação e ICMS no desembaraço aduaneiro.”

Em decisão mais recente, de janeiro de 2024, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao tratar de uma operação de importação de mercadorias, reafirmou:

“A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a imunidade contida no art. 150, VI, c, da Constituição Federal abrange o ICMS incidente na importação de bens utilizados na prestação de serviços pelas entidades de assistência social.”

Essas decisões, embora relacionadas à importação, utilizam o mesmo fundamento constitucional do artigo 150, VI, c, aplicável também às aquisições internas.

Imunidade Tributária nas Aquisições e a Reforma Tributária

Como dito, o sistema tributário brasileiro está sofrendo uma profunda mudança, notadamente no que diz respeito à tributação sobre o consumo. Nessa nova sistemática de tributação, conviverão o IBS e a CBS, que têm como características principais a base ampla de incidência, a tributação no destino, a não cumulatividade plena, a cobrança “por fora”, a desoneração das exportações e a incidência sobre importações.

Em relação às entidades sem fins lucrativos, a Emenda Constitucional nº 132/2023 estabeleceu, em seu artigo 149-B, parágrafo único, que o IBS e a CBS observariam as imunidades previstas no artigo 150, inciso VI da CF/88, com o seguinte texto: “§ único – Os tributos de que trata o caput observarão as imunidades previstas no art. 150, VI, não se aplicando a ambos os tributos o disposto no art. 195, § 7º.”

Ficaria a cargo de Lei Complementar a regulamentação do IBS e CBS, o que ocorreu com a promulgação da Lei Complementar nº 214/2025, que dispôs sobre a fruição da imunidade tributária pelas organizações sem fins lucrativos.

No art. 9º, § 4º dessa Lei, estabeleceu-se o seguinte: “Art. 9º São imunes também ao IBS e à CBS os fornecimentos: […] § 4º As imunidades das entidades previstas nos incisos I a III do caput deste artigo não se aplicam às suas aquisições de bens materiais e imateriais, inclusive direitos, e serviços”.

A edição da Lei Complementar nº 214/2025 trouxe um novo cenário para as entidades do terceiro setor no que se refere à imunidade tributária. Embora a Emenda Constitucional nº 132/2024 tenha reafirmado a proteção prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal, a regulamentação infraconstitucional acabou impondo limites práticos ao alcance dessa garantia.

A previsão do § 4º do art. 9º da nova Lei, prevê a incidência do IBS e da CBS sobre a aquisição de bens – tanto materiais quanto imateriais – bem como sobre a contratação de direitos e serviços por essas entidades, salvo as exceções dos dispositivos médicos, previstas no art. 144 da Lei. Na prática, isso significa que a imunidade passa a valer apenas nas operações em que as entidades atuam como fornecedoras de bens ou prestadoras de serviços, não mais sendo aplicada às suas compras.

Com isso, organizações sem fins lucrativos, que historicamente contam com a imunidade como ferramenta de fomento às suas atividades, podem enfrentar novos entraves financeiros e operacionais. A mudança exige atenção e planejamento, especialmente diante da complexidade do novo sistema tributário em formação.

Conclusão

Diante das alterações promovidas pela LC nº 214/2025, especialmente com a restrição da imunidade tributária nas aquisições realizadas por entidades do terceiro setor, torna-se imprescindível que tais organizações revisem seus planejamentos estratégicos e orçamentários, a fim de mitigar os impactos financeiros e operacionais decorrentes da nova sistemática.

No plano jurídico, há espaço para questionamentos quanto à constitucionalidade do § 4º do art. 9º da referida Lei Complementar. Isso porque a Constituição Federal, ao conferir imunidade tributária às entidades sem fins lucrativos por meio do art. 150, inciso VI, alínea “c”, não impôs qualquer distinção expressa entre operações de saída (oferta de bens ou serviços) e operações de entrada (aquisições).

A separação entre fatos geradores “de saída” e “de entrada” foi fruto de uma construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal em contextos anteriores, vinculados a outros tributos.
Com a introdução do IBS e da CBS, tributos de natureza distinta e submetidos a uma nova lógica de incidência, ganha força a tese de que a interpretação jurisprudencial anterior merece ser revisitada, sobretudo quando confrontada com os princípios constitucionais de proteção às atividades de interesse público desempenhadas por essas entidades.

Nesse sentido, é possível a formulação de ações judiciais visando a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo, seja por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta por legitimados nos termos do art. 103 da CF/88 — como partidos políticos, entidades de classe de âmbito nacional ou confederações sindicais —, seja por meio de ações individuais ou coletivas, como mandados de segurança ou ações declaratórias de nulidade, desde que preenchidos os requisitos legais.

Portanto, o cenário atual exige uma movimentação dos contribuintes ou mesmo uma resposta institucional estratégica por parte das entidades afetadas quanto a mobilização do debate jurídico sobre os limites da atuação do legislador complementar frente às garantias constitucionais.

 

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