Aspectos contábeis do M&A
Na esteira dos princípios basilares da contabilidade, a harmonização de práticas contábeis em um contexto econômico globalizado se mostra imprescindível. Neste artigo, será apresentada uma opinião técnica relativa à importância da observação das normas contábeis em relação a alocação eficiente de capital por partes interessadas em operações que envolvam transferência de controle, como fusões e aquisições, além da relevância da atualização constantes dos operadores, bem como a polêmica que paira sobre o teste de impairment de Goodwill nos debates promovidos pelo IASB.
Introdução
O IASB (International Accounting Standards Board) é um órgão independente que emite normas internacionais de contabilidade, conhecidas como IFRS (International Financial Reporting Standards), com o objetivo de unificar e aperfeiçoar os padrões contábeis ao redor do mundo.
O objetivo das normas é melhorar a qualidade e a comparabilidade das informações financeiras, proporcionando aos investidores um maior entendimento dos riscos e retornos associados aos diferentes investimentos, o que permite a alocação eficiente do capital.
Dentre as normas emitidas pelo IASB, temos o IFRS 3 – Business Combinations, voltada para a contabilização e divulgação de informações em operações societárias que envolvem transferência de controle. Em sua versão brasileira, temos o CPC nº 15 – Combinação de negócios, que segue de maneira similar o padrão internacional.
Essa norma contábil dita as regras das conhecidas operações de M&A – Mergers and Acquisitions ou Fusões e Aquisições, em que, mediante o pagamento de dinheiro, participações societárias, assunção de obrigações e outras formas de contraprestação, uma entidade adquirente assume o controle de uma entidade adquirida.
Compreendendo a combinação de negócios
Como premissa, destaca-se que o CPC 15 só se aplica a empresas independentes, não se estendendo a empresas sob controle comum. Isso é, a norma é aplicada quando há uma transferência de controle entre entidades não relacionadas. (Apêndice B, item B1 – CPC 15 R1, Comitê de Pronunciamentos Contábeis).
Uma combinação de negócio, então, é baseada em uma operação por meio do qual um adquirente obtém o controle de um ou mais negócios, independentemente da forma jurídica da operação. (Apêndice A – CPC 15 R1, Comitê de Pronunciamentos Contábeis, 2023).
Nestas operações, a partir da data efetiva em que o negócio foi fechado, a adquirente passa a exercer o controle da adquirida, seja por maioria de votos, mediante um acordo formal para tomada de decisões ou estabelecimento de novas políticas governamentais na empresa controlada e recém adquirida.
Definição de negócio
Para se definir o que é um negócio passível de aquisição é preciso: “identificar um conjunto integrado de atividades e ativos capaz de ser conduzido e gerenciado com o objetivo de fornecer bens ou serviços a clientes, gerando receita de investimento (como dividendos ou juros) ou gerando outras receitas de atividades ordinárias.” (Apêndice A – CPC 15 R1, Comitê de Pronunciamentos Contábeis).
No Brasil, comumente associa-se combinação de negócios a qualquer reestruturação societária. No entanto, isso não é uma verdade absoluta, pois conforme as regras do CPC 15 uma combinação de negócios é definida como uma transação ou outro evento em que um adquirente obtém o controle de um ou mais negócios. O conceito de “controle”, portanto, se mostra absolutamente relevante.
Importante lembrar, inclusive, que empreendimento controlados em conjunto, sociedades subsidiárias integrais, coligadas e joint ventures, por exemplo, não são abrangidas pelo CPC nº 15, haja vista não haver transferência de controle.
Obtenção de controle
De fato, as fusões e aquisições são as operações mais comuns de combinação de negócios, ou seja, duas pessoas jurídicas tornam-se uma (fusão) ou quando uma sociedade transfere seus ativos para outra, sempre com transferência de controle (aquisição).
Por senso comum, define-se transferência de controle nos eventos em que a participação da adquirente, após a combinação de negócios, é de mais da metade do capital com direito a voto, da adquirida. Porém, há outras formas de identificar a obtenção de controle.
Conforme orientação contida no Apêndice B – Itens B5 a B12 do CPC 15 R1, por exemplo, a obtenção de controle envolve transferência de ativos, assunção de passivos, emissão de ações, além de tópicos adicionais previstos no item B15 da mesma norma, como instrumentos com potencial direito a voto, recompra de ações, disposição em acordo de acionistas, composição de alta administração e outros.
Procedimentos em uma combinação de negócios
A combinação de negócios, então, começa com a identificação do adquirente, ou seja, a entidade que irá obter o controle do negócio e, normalmente, quem promove o pagamento, ou seja, aquele que desembolsa recursos para adquirir o controle do negócio em determinado momento (data de aquisição).
Ato seguinte, determina-se a data de aquisição, ou seja, o momento exato em que o adquirente obtém o controle sobre a adquirida, de suma importância na aplicação do método de aquisição, pois é nesse momento que os ativos adquiridos e passivos assumidos são reconhecidos e mensurados, como veremos a seguir.
Reconhecimento e mensuração dos ativos identificáveis adquiridos e passivos assumidos
Após a identificação do adquirente e a determinação da data de aquisição, o CPC 15 orienta o reconhecimento e mensuração dos ativos identificáveis adquiridos e passivos assumidos, ou seja, o patrimônio líquido ou ativos líquidos, os quais devem, ato subsequente, ser mensurado pelo seu valor justo na data de aquisição.
O valor justo pode ser entendido como o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração. (Apêndice A – CPC 15 R1, Comitê de Pronunciamentos Contábeis).
Tecnicamente, o valor justo serve para mensurar de maneira imparcial o valor econômico dos ativos e passivos envolvidos na combinação de negócios, justamente para que sejam consistentes as informações nas demonstrações contábeis e possa pautar a decisão de alocação de capital das partes envolvidas.
Método de Aquisição
O CPC 15 adota o chamado “método de aquisição” para orientar as combinações de negócios, ou seja, a entidade deve contabilizar cada operação pela identificação do adquirente, a determinação da data de aquisição e o reconhecimento e mensuração dos ativos identificáveis adquiridos, dos passivos assumidos e das participações societárias de não controladores na adquirida. (Item 5 – CPC 15 R1, Comitê de Pronunciamentos Contábeis).
Este método contempla o reconhecimento e a mensuração do ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill) ou do ganho proveniente de uma compra vantajosa, a partir da mensuração do valor justo alcançado quando da identificação dos ativos adquiridos e passivos assumidos, como vimos anteriormente.
Os métodos utilizados para se alcançar o valor justo variam conforme os ativos e passivos envolvidos na operação, destacando-se peculiaridades para cada um deles, como se observa nos itens B31 a B46 do CPC 15 R1, a exemplo do tratamento dispensado ao arrendamento, ativos intangíveis, participações de não controladores, força de trabalho e outros.
Reconhecimento e mensuração do ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill) ou do ganho proveniente de compra vantajosa
Conforme item 32 do CPC 15 (R1), em regra, o adquirente deve reconhecer o ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill) na data da aquisição, quando o valor da contraprestação pela obtenção do controle for superior ao valor justo dos ativos e passivos.
Lado outro, conforme item 34 do Pronunciamento de nº 15, em regra, quando de uma combinação de negócios, pode se reconhecer uma compra vantajosa, quando a contraprestação do adquirente é menos que o valor justo dos ativos e passivos devidamente apurados.
Quando é reconhecido, então, o ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill), há a necessidade de se testar seu valor recuperável periodicamente, conforme determinação do CPC 01 (R1).
Evidenciação
Observados os conceitos trazidos, a partir do item B64 do CPC 15 (R1), tem-se as informações que a adquirente deve evidenciar em uma combinação de negócios, as quais vão desde a divulgação do nome e descrição da adquirida, passando pelos percentuais adquiridos, valores contábeis e justo apurados, o goodwill ou ganho por compra vantajosa, a forma de contabilização da operação e outros.
Todas as informações devem ser evidenciadas de maneira absolutamente transparente para se fazer valor o princípio incialmente trazido neste artigo, de que as informações contábeis devem servir aos usuários, aqueles que necessitam de informações assertivas para alocação do seu capital de maneira eficiente.
Após a combinação de negócios, então, a adquirente, agora controladora, deve proceder Método de Equivalência Patrimonial – MEP, regulado pelo artigo 248 da Lei 6.404 de 1976 e objeto do CPC nº 18, que o define como o: “método de contabilização por meio do qual o investimento é inicialmente reconhecido pelo custo e, a partir daí, é ajustado para refletir a alteração pós-aquisição na participação do investidor sobre os ativos líquidos da investida.”. (BRASIL, 2023).
Desempenho futuro da operação
Como visto até o momento, as normas contábeis fornecem diretrizes detalhadas para a contabilização em uma combinação de negócios. A sua aplicação é essencial para garantir transparência, consistência e comparabilidade nas demonstrações financeiras.
Importante lembrar, contudo, que as normas contábeis em processos de M&A devem orientar não só a combinação de negócios em seu momento presente, mas, principalmente, trazer transparência e meios hábeis a indicar o desempenho futuro daquela operação às partes envolvidas, investidores e interessadas / stakeholders.
É justamente neste momento que surgem algumas lacunas nas normas contábeis passíveis de debate, já que o acompanhamento do desempenho futuro e informações relacionadas a uma combinação de negócios podem não ser utilizadas por todas as entidades de maneira eficiente.
Teste de impairment e o Goodwill
Após a combinação de negócios, como vimos, o goodwill é registrado como ativo intangível da adquirente, motivo pelo qual se torna objeto de teste de mensuração do seu valor recuperável, qual seja, o maior valor entre o valor justo líquido de despesas de venda de um ativo ou de unidade geradora de caixa e o seu valor em uso (item 18 do CPC 01 – R1). (CPC, 2023)
Anualmente, então, conforme item 10 do CPC 01 (R1) a entidade deve testar o valor recuperável do ágio pago com expectativa de rentabilidade futura em consequência de uma combinação de negócios, já que considerado um ativo intangível com vida útil indefinida.
O objetivo, naturalmente, é medir o desempenho daquele ativo (Goodwill), em relação a sua Unidade Geradora de Caixa, ao longo do tempo, com o objetivo de prover às partes relacionadas informações contábeis fidedignas em relação a expectativa de retorno apontado pela sinergia daquela operação.
Isto porque, muito embora o ágio por si só não seja capaz de gerar caixa ou outro tipo de retorno financeiro para a entidade, ele representa, justamente, o potencial de riqueza a ser produzido pelos demais ativos adquiridos na combinação de negócios, que, inclusive, pode sofrer variações influências internas e externas à organização ao longo do tempo. Por este motivo há a necessidade de se proceder ao teste de valor recuperável.
Foi nesta linha de raciocínio, com o intuito de prover informações claras e assertivas aos investidores e partes relacionadas, que as normas internacionais de contabilidade – International Accounting Standard 36 (IAS 36), seguido pelo CPC 01 (R1) institucionalizou o teste a valor recuperável do Goodwill.
Efetividade do teste de impairment e o Goodwill
Na dinâmica de mercado, contudo, analisando os Discussions Papers e outros documentos apresentados pelo próprio International Accounting Standards Board (IASB), verifica-se, atualmente, que o teste de valor recuperável (Impairment) pode não ser a mais efetiva ferramenta para se identificar, assertivamente, a expectativa de retorno daquele ágio. (INGLATERRA, 2023)
Em princípio, contudo, é indicado pelas normas contábeis (item 10 do CPC 01 (R1)) que o teste de impairmentseja realizado, no mínimo, anualmente ou conforme os itens 10 a 12 do CPC 01 (R1), quando presentes alguns indicadores internos e externos específicos que apontem tal necessidade.
No Brasil, por exemplo, estudos demonstram que na prática os gestores não promovem o teste tempestivamente, ou o utilizam de maneira engenhosa, quando conveniente. (Cappellesso & Jorge Niyama. 2022 – Rev. contab. finanç. 33).
Além disso, no discussion paper DP/2020/1 (IASB,2020) com o título – Business Combinations – Disclosures, Goodwill, and Impairment, foram trazidas informações sobre o alto custo de realização dos testes de Impairment, haja vista sua complexidade, além de ter sido questionada a sua própria efetividade, sugerindo que as informações não são devidamente compreendidas pelos investidores. (INGLATERRA, 2023).
O debate trazido, então, sugere a simplificação dos testes de impairment para que as informações aprimoradas ajudem os investidores a avaliar o desempenho subsequente das empresas que realizaram aquisições e, inclusive e, eventualmente, responsabilizem a gestão da sociedade por suas decisões.
Influência nos resultados
Como dito, um debate contemporâneo a respeito do teste de impairment, diz respeito a discricionariedade e oportunismo de gestores quando de sua realização, no sentido de atrasar ou superdimensionar seus valores, afetando diretamente a percepção dos investidores em relação as informações contábeis.
Sugere-se, ainda, que as perdas de Goodwill não são apropriadas a tempo e modo. No Brasil, por exemplo, entre os anos de 2010 e 2020, menos de 10% de 163 empresas não financeiras contabilizaram alguma perda de Godwill. (Cappellesso & Jorge Niyama. 2022 – Rev. contab. finanç. 33).
As críticas ao modelo não param por aí, estudos apontam que os administradores podem ser motivados a postergar ou evitar a contabilização das perdas do goodwill, com o objetivo de supervalorizar este ativo, os lucros ou os preços das ações, prejudicando os acionistas. (Bartov et al., 2020)
Tal fato pode ter como influência a base principiológica dos normativos contábeis, que acabam por conceder maior poder decisório aos gestores, os quais, por sua vez, podem lançar mão do gerenciamento de resultados nos testes de impairment. (Cappellesso & Jorge Niyama. 2022 – Rev. contab. finanç. 33).
Contexto Brasileiro
No contexto brasileiro, os estudos avançaram na demonstração de estratégias de reconhecimento acelerado de perdas quando da troca de gestores para atribuir culpabilidade aos seus antecessores ou para reconhecimento de melhores resultados futuros em sua gestão, por exemplo. (Alves & Silva, 2020)
Outra prática adotada faz menção a tempestividade do reconhecimento de perdas em Goodwill, como por exemplo no estudo realizado por (Cappellesso & Jorge Niyama. 2022 – Rev. contab. finanç. 33), onde foi constatado que, ao longo de 11 (onze) anos, no período de 2011 a 2020, em uma amostra de 163 empresas listradas na B3, mais da metade registrou Goodwill em suas demonstrações contábeis.
No total, a pesquisa apontou 1.324 registros de Goodwill no período analisado, contudo, apenas 129 registraram perda de valor recuperável supervenientemente ao registro, o que corresponde a menos de 10% de reconhecimento de perda, o que representa uma evidente lacuna nas informações oriundas de combinação de negócios.
Conclusão
O artigo técnico analisado destaca a relevância da observância das normas contábeis, especialmente em operações de fusões e aquisições. Estas operações, que envolvem significativas transferências de controle e alocações de capital, necessitam de uma contabilidade precisa e transparente para garantir que os stakeholders tomem decisões informadas.
Um dos pontos centrais do artigo é a discussão em torno do teste de impairment para Goodwill. O Goodwill, que representa o ágio pago em uma aquisição acima do valor justo dos ativos líquidos adquiridos, é um ativo intangível que pode perder valor ao longo do tempo. O teste de impairment busca avaliar se o valor contábil do Goodwill ainda é recuperável em relação ao seu valor de mercado ou valor em uso. Se o valor contábil for considerado superior ao valor recuperável, uma baixa contábil é necessária.
A polêmica em torno deste teste reside em sua subjetividade e complexidade. Determinar o valor justo ou o valor em uso do Goodwill envolve projeções futuras e estimativas que podem ser influenciadas por diversos fatores econômicos, estratégicos e operacionais. Além disso, o debate promovido pelo IASB sobre o tema reflete as diferentes visões, polêmicas e práticas contábeis envolvidas.
No contexto brasileiro, a evolução do estudo e aplicação do teste de impairment para Goodwill é, da mesma forma, debatido por profissionais e estudiosos do tema. O Brasil, ao adotar as normas internacionais de contabilidade (IFRS), comprometeu-se a seguir padrões globais de transparência e precisão, como visto no início deste artigo.
No entanto, as particularidades do ambiente de negócios brasileiro, juntamente com as características específicas de suas empresas, tornam essencial uma análise mais aprofundada sobre como o teste de impairment é aplicado e interpretado no país. Vimos que no Brasil, há uma lacuna nos testes de impairment após as operações de aquisição, de maneira que o Goodwill pode estar sendo deixado de lado, não sendo reconhecido a tempo e modo, o que prejudica a alocação eficiente de capital dos investidores.
Em suma, o artigo ressalta a importância de uma contabilidade robusta e transparente em operações de fusões e aquisições e chama a atenção para os desafios e polêmicas em torno do teste de impairment do Goodwill, enfatizando a necessidade de avanços nessa área no cenário brasileiro.