IA representando Morte e Inteligência Artificial

Direito de Imagem após a Morte e Inteligência Artificial: Análise da Decisão do CONAR no Caso Elis Regina e outras reflexões

No último mês de agosto, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) arquivou o processo fiscalizatório em relação ao uso da imagem da icônica cantora Elis Regina em uma campanha publicitária recriada por meio de uma ferramenta de inteligência artificial chamada AlmapBBDO. Na propaganda em questão, a artista que faleceu em 1982 aparece dirigindo uma Kombi antiga fazendo dueto com a sua filha, Maria Rita, enquanto esta dirige um modelo novo do veículo. 

A utilização de IA para recriar figuras públicas falecidas levanta questões importantes sobre os limites legais e éticos da tecnologia. Por um lado, essa prática pode ser vista como uma forma de homenagear e manter viva a memória de personalidades marcantes. Por outro lado, pode ser interpretada como uma exploração comercial insensível dos legados das pessoas. 

 

A Decisão do CONAR  

O CONAR é uma entidade que autorregula a publicidade no Brasil e é o responsável por analisar e julgar casos relacionados à ética e às normas publicitárias. No caso da campanha envolvendo Elis Regina, o CONAR instaurou um processo para avaliar se o uso da imagem da cantora por meio de IA era adequado à luz da legislação que regulamenta a propagando no país. Em particular foram abordados dois pontos principais na decisão: 

1. “- se foi respeitoso e ético o uso no anúncio de vídeo recriando a imagem da cantora Elis Regina, falecida em 1982, feita por meio de inteligência artificial generativa híbrida, e”;

2. “- se era necessária informação explícita sobre o uso de tal ferramenta para compor o anúncio”. 

Após análise, o CONAR decidiu por unanimidade arquivar o processo, considerando que a campanha não violava as normas éticas da publicidade, uma vez que o uso da imagem da cantora foi realizado mediante o consentimento dos herdeiros e “observando que Elis aparece fazendo algo que fazia em vida”. 

É possível afirmar que a decisão aplicou uma lógica já consolidada na interpretação do art. 20 do Código Civil, pela qual a imagem de pessoa morta pode ser protegida por requerimento de cônjuge, ascendente ou descendente (i) se lhe atingir a honra ou (ii) se destinar para fins comerciais. No caso, apesar de a veiculação da propaganda ter uma finalidade comercial, houve inequívoca anuência da filha da cantora e não houve qualquer ofensa a honra de Elis.  

Diante da ausência de regulação sobre o uso responsivo de conteúdos gerados por IA em materiais publicitários, os conselheiros do CONAR se guiaram por recomendações de boas práticas para considerar que a transparência foi respeitada no caso, já que foi considerado que “o uso da ferramenta estava evidente na peça publicitária. 

A decisão gerou debates não apenas sobre os critérios utilizados para avaliar a ética da situação, bem como sobre a capacidade das regulamentações e leis atuais de abordar questões emergentes tão novas relacionadas à tecnologia e à inteligência artificial. 

 

Direito de Imagem como direito patrimonial: imagem como propriedade industrial?  

Apesar de o Direito de Imagem ter sido concebido como base na dignidade da pessoa humana, ele possui uma inegável face patrimonial e econômica. A partir disso podemos realizar reflexões.  

Por exemplo, considerando que Santos Dumont faleceu em 1932, seria possível uma empresa que presta serviços de logística em aeroportos utilizar o nome do aviador vanguardista? Até quantos anos após a morte de uma pessoa o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI deverá exigir prova da titularidade para o registro de marca? 

Nesse sentido, o art. 124, XV, da Lei de Propriedade Intelectual estipula: “Não são ” registráveis como marca: […] XV – nome civil ou sua assinatura, nome de família ou patronímico e imagem de terceiros, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores;“. 

Ao dispor a regulamentação desse dispositivo legal, o Manual de Marcas do INPI2 se atém a dizer que os pedidos nesse sentido, cujo requerente não seja o próprio titular, “devem estar acompanhados de autorização do detentor do direito para registrá-lo como marca“. No entanto, nada há na regulamentação normativa sobre o limite temporal do direito de imagem. 

No caso fictício exemplificado, entende-se que a empresa de serviços logísticos em aeroportos precisaria de uma anuência expressa dos descendentes de Santos Dumont para registrar sua marca ou produto. 

 

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Vácuo normativo: temporalidade do Direito de Imagem após a Morte  

O Direito de Imagem está consagrado como direito fundamental no art. 5º, X da Constituição Federal: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação“. 

No entanto, é importante ressaltar que o Direito de Imagem não é absoluto, devendo ser considerado em uma leitura conjunta com outros direitos fundamentais, como os direitos à Livre Manifestação, à Liberdade de Expressão, ao Acesso à Informação, à Cultura, à Defesa do Consumidor e à Autodeterminação Informativa. 

Para realizar essa ponderação, foi editado o Enunciado 279 do Conselho da Justiça Federal: 

“A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.” 

Contudo, é importante notar que o Código Civil de 2002, em seus dispositivos legais, não estabelece um prazo específico sobre a exploração da imagem de pessoa morta. Portanto, é possível considerar que existe uma lacuna legislativa. 

O ideal é que se criem regras específicas que definam como a imagem de alguém que já morreu pode ser usada, especialmente quanto tempo levará para essa imagem ficar disponível para todos. Contudo, essa análise merece um debate público mais profundo. 

Com isso em mente, poderíamos debater a extensão temporal que os aspectos financeiros dos direitos de imagem póstuma deveriam abranger, sem que isso fosse visto como um desrespeito aos falecidos. Seria viável explorar uma proposta para delimitar um tipo de direito pessoal que, à semelhança de outros direitos, não precisaria ser necessariamente considerado infinito? 

Por exemplo, existem propostas para utilizar uma aplicação analógica da Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9.610/1998), a qual prevê que o prazo de 70 anos para os direitos patrimoniais do autor, contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento. 

 

Adoção de selo para identificar conteúdo gerado por IA  

A OpenAI (criadora do ChatGPT), juntamente com a Alphabet (Google), a Meta (Facebook), a Amazon e outras organizações, estão planejando implementar um selo de identificação para conteúdo gerado por inteligência artificial (IA). O anúncio foi realizado pelo governo dos EUA3. O objetivo desse selo seria informar os usuários quando estão interagindo com conteúdo criado por algoritmos, em vez de por humanos.  

Nesse sentido, o Ccongresso americano também está analisando um projeto de lei que obrigará a divulgação do uso de IA na criação de imagens e outros conteúdos em propagandas.  

Essas iniciativas surgem como resposta à crescente disseminação de conteúdos falsos e manipulados, buscando aumentar a transparência e a compreensão do público sobre a origem desses materiais. 

 A introdução de um selo de identificação para conteúdo gerado por IA poderia ser um passo importante no esforço de combater a desinformação online. No entanto, a efetividade desse tipo de sinalização ainda é altamente questionada.

 

Seria possível implementar tal sinalização com uma compreensão acessível ao público em geral? Além disso, como podemos confiar na invulnerabilidade desse tipo de sinalização à adulteração? 

São levantados ainda questionamentos sobre como esse selo afetará a percepção e confiança dos usuários em relação a conteúdos digitais. A tecnologia continua a avançar, e as implicações éticas e sociais do uso da IA na criação de conteúdo ainda precisam ser totalmente exploradas. Como resultado, a implementação desse selo não apenas visa rotular o conteúdo, mas também pode ser um catalisador para discussões mais amplas sobre a interseção entre tecnologia, comunicação e responsabilidade na era digital. 

 

Conclusões e Reflexões  

Neste contexto complexo que envolve direitos de imagem após a morte e a utilização da inteligência artificial, é possível traçar algumas conclusões e reflexões relevantes:  

Limites Éticos e Tecnológicos: O caso do uso da imagem de Elis Regina demonstra que a aplicação da inteligência artificial em recriações de figuras públicas falecidas envolve dilemas éticos e tecnológicos. Questões sobre homenagem versus exploração comercial e a capacidade das regulamentações atuais de abordar essas novas questões são cruciais.  

Necessidade de Regulamentação Específica: A ausência de regulamentação específica para o uso da imagem póstuma em campanhas publicitárias ressalta a importância de normas claras e atualizadas. A analogia com a lei de Direitos Autorais e a necessidade de um enquadramento legal para limitar o uso da imagem pós-morte são aspectos a serem considerados.  

Balancing Act: O direito de imagem não é absoluto e deve ser ponderado com outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o acesso à informação. A necessidade de equilibrar a proteção da imagem com a livre manifestação é um desafio contínuo que requer análise cuidadosa.  

Transparência na Era Digital: O surgimento de um selo de identificação para conteúdo gerado por IA pode representar um avanço na luta contra a desinformação e as violações de direito de imagem, mas também levanta preocupações sobre sua eficácia e manipulação. A confiança do público na tecnologia e na informação online é uma consideração central.  

Discussões Interdisciplinares: A interseção entre direitos, tecnologia e ética demanda discussões interdisciplinares entre áreas como Direito, Ética, Tecnologia e Comunicação. Encontrar um equilíbrio entre inovação tecnológica e preservação dos valores éticos é um desafio constante.  

Temporalidade do Direito de Imagem: A necessidade de estabelecer um limite temporal para a proteção do direito de imagem póstuma é crucial. Encontrar um prazo que respeite a memória das personalidades falecidas enquanto também permite que o uso criativo e a liberdade de expressão floresçam é uma tarefa complexa.  

Em última análise, a complexidade dessas questões requer uma abordagem multidisciplinar e um diálogo contínuo entre legisladores, reguladores, tecnólogos e a sociedade em geral para garantir um equilíbrio adequado entre inovação e ética no uso da tecnologia e na preservação dos direitos individuais. 

 

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